Espalhando amor através do trabalho voluntário
Grupo realiza ações voluntárias para melhorar a qualidade de vida de quem sofre com o abandono familiar e carência afetiva
Um carinho, um abraço e uma conversa. Demonstrações de afeto que parecem tão simples, mas que fazem falta na vida de quem enfrenta o abandono e a carência afetiva. Dados do último Censo do IBGE de 2010 mostram que Porto Alegre é a capital brasileira que apresenta o maior percentual de idosos, representando 15,04% da população. Muitos deles vivem nas Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs), antes chamados de “lares”. Existem cerca de 800 ILPIs no Estado e, conforme dados divulgados pela Secretaria de Saúde em abril deste ano, 49 destas estão regularizadas na Capital. A realidade de quem vive nas ILPIs é, muitas vezes, marcada pela solidão devido ao abandono por parte da família.
Pensando nisso, a bióloga Carla Muller, de 31 anos, criou a ONG Dia do Amor. A ideia surgiu em 2019, quando ela passou por um período difícil em que precisou lidar com crises de pânico e ansiedade. Enquanto estava internada no hospital, Carla decidiu que queria fazer o bem ao próximo. “Eu queria curar o outro como uma forma de ajudar a me curar”, explica. E a decisão de ajudar os idosos foi para mostrar o valor que eles têm. “O idoso já passou por tanto na vida, tem uma bagagem tão grande que as pessoas às vezes esquecem disso. E um dos grandes objetivos da ONG é mostrar o valor que o idoso tem, mostrar a importância de incluí-los e de fazer coisas para eles” afirma Carla.
Determinada a proporcionar um “dia do amor”, a bióloga lançou o convite nas redes sociais e recebeu apoio. Em maio de 2019, acompanhada de um grupo de amigos, Carla organizou a primeira ação voluntária, fazendo uma visita à Spaan (Sociedade Porto-alegrense de Auxílio aos Necessitados), que abriga mais de 130 idosos de baixa renda. E a ação foi um sucesso. Pouco tempo depois, o “dia do amor” foi formalizado e se tornou uma ONG, que conta hoje com o apoio de mais de 160 voluntários que visitam lares na Capital e levam o amor aos idosos através de sorrisos, músicas, conversas e atividades recreativas.
Enfrentando a carência afetiva
Nem todos os idosos estão preparados ou gostariam de ir para uma ILPI. Quando chegam lá, precisam lidar com diversas questões, como ver pessoas doentes e sentir medo do envelhecimento. Além disso, muitos enfrentam o abandono familiar e o sentimento de solidão, que ficou ainda mais evidente com o isolamento social no período de pandemia, já que as visitas se tornaram ainda menos frequentes e com tempo limitado.
A psicóloga Lidiane Klein, especialista em Neuropsicologia, mestre em Psicologia e Saúde e Doutoranda em Ciências da Reabilitação explica que as questões comportamentais evidenciam o sentimento de solidão de que nem sempre diz o que está sentindo. Além da experiência clínica com a terceira idade, ela coordena projetos voltados para esse público e trabalha também em um residencial geriátrico em Dois Irmãos, onde convive com muitos idosos. “Nos pacientes que eu atendo, pela fisionomia da pessoa já dá para ver que algo não está legal. Eles ficam mais quietos, não interagem tanto com os demais, buscam o isolamento no próprio grupo. Não ter fome e não querer se alimentar também são características que chamam a atenção”, detalha.
Lidiane destaca a importância do trabalho voluntário para a terceira idade e fala sobre a formação de vínculos entre eles. “Muitas vezes esse sentimento de solidão está atrelado a um sentimento de desamparo, de sentir que não tem ninguém por eles. Então, o voluntário ajuda nesse sentido, de que tem alguém ali disposto a ouvir, interagir, ter essa troca que muitas vezes o familiar não tem.” Ela comenta que o envelhecimento traz perdas, entre elas a perda de memória, e que isso faz com que os idosos não tenham tanto assunto.
Assim, depende do familiar fazer a interação, mas muitos não conseguem ou não sabem, por isso acabam se isolando ainda mais. Para Lidiane, a diferença entre as visitas é que muitas vezes familiar vai por se sentir obrigado a visitar o idoso que está institucionalizado. “Já o voluntário está ali porque quer, faz de coração, quer interagir e dar o melhor dele para aquelas pessoas e como um idoso já é um pouco mais carente, a pessoa que dá um pouco de afeto, eles se apegam muito facilmente”, explica a psicóloga. De acordo com ela, o público idoso não tem tanto contato afetivo como se tinha em outro período, se sentem mais vulneráveis e precisam de maior contato.
O amor pelo voluntariado
“Hoje eu não me vejo sem fazer voluntariado”, afirma Lisiane Zavalhia, de 34 anos, voluntária da ONG. Ela conheceu o trabalho através de uma colega de trabalho e decidiu participar. “Na primeira ação que fui fiquei muito emocionada, porque é uma realidade completamente diferente daquela que a gente projeta. Voltei pra casa me sentindo completa por poder doar um pouquinho do meu tempo, conversar, abraçar e dar carinho. Isso mudou completamente a minha vida”, relata.
Ela relembra uma ação realizada na Spaan no final de 2019, quando os voluntários fizeram uma comemoração de Carnaval com os idosos. “Eu perdi minha avó em 2017 e lá tinha uma idosa muito parecida com ela em todos os aspectos. Isso me marcou muito, pra mim foi a ação mais especial, porque também foi um dos meus primeiros contatos com a ONG”, conta. Lisiane destaca ainda que os voluntários, em sua maioria, são jovens, e que isso motiva. “São jovens que dispõem do seu tempo e isso motiva bastante, porque a gente vê que as pessoas não estão focadas só na sua vida”, diz.
Maite Lemanski, de 25 anos, participa como voluntária desde a primeira ação. Ela conta que sempre gostou de fazer o bem, desde a época da escola, e procurava ajudar principalmente crianças, mas foi através da Dia do Amor que ela se aproximou dos idosos, se envolveu com o trabalho e agora participa de todas as atividades. “Cada ação que a gente faz, além de levar felicidade, retribui muito pra gente, saímos com o coração cheio”, diz Maite.
Ela destaca a importância do trabalho voluntário: “Pra nós também é muito importante parar um pouco a nossa rotina maluca, ter um tempo totalmente diferente em que nos dedicamos à outra pessoa.” O voluntariado representa bastante tempo do seu dia, pois quando não está participando das ações, ela está divulgando a ONG e convidando os amigos para participar. Maite conta que se envolveu tanto com o trabalho que, além de voluntária, agora também faz parte do Conselho da ONG e ajuda na formação de ideias.
Quem também integra a equipe desde o início é a Caroline de David, de 33 anos. Ela sempre gostou de trabalhar com a terceira idade, tanto que se formou em Nutrição com especialização em Saúde do Idoso. Agora que o atendimento a idosos não faz mais parte de sua rotina de trabalho, ela viu na ONG uma oportunidade de estar com eles novamente. “É legal ver a alegria deles, conversar e participar. Disponibilizar um pouco do tempo, não só de doação, mas saber que a gente está fazendo alguma coisa pra ajudar. É gratificante ver a alegria e a gratidão das pessoas com as nossas conversas”, conta Carol.
Um “dia do amor” pra todo mundo
A pandemia que surpreendeu o mundo e afetou tantas pessoas, interrompeu também um dos principais trabalhos da ONG: a visita aos idosos. Como são parte do grupo de risco, foi necessário mantê-los protegidos. As doações de alimentos para os lares continuaram, mas o abraço, as atividades e as conversas que alegravam as tardes de tantos idosos foram suspensos.
E mesmo nesse cenário difícil a ONG Dia do Amor se reinventou, descobrindo novas formas de fazer o bem para outros públicos. “A gente pensou ‘tem condição de fazer mais, tem público pra fazer mais e a gente pode, então por que não fazer mais’?”, conta Carla. Agora, os voluntários fazem doações de marmitas e lanches para moradores de rua, além de ações para ajudar os animais. “A gente saiu de ‘doar nosso tempo’ e fomos para coisas extraordinárias”. Ela explica que foi preciso muita adaptação e que a ONG cresceu na dor. “Meu pai sempre fala que a dor ensina a gemer, então a gente cresceu no pior cenário possível’, afirma.
Porém, o foco da principal ONG ainda é o público idoso. “Sempre vai ser eles, foi por eles que a gente conquistou e chegou a tantos lugares extraordinários. É por eles que a ONG existe, mas não tem como fechar os olhos pra tantas pessoas pedindo ajuda”, diz Carla.
Em abril deste ano, o Dia do Amor foi destaque no programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo. Representada por Carla e Janaína Klunck no quadro The Wall, a ONG arrecadou quase 150 mil reais para os novos projetos, que inclui a construção de uma sede própria para prestar serviços gratuitos aos idosos, como nutrição, fisioterapia e acompanhamento psicológico. Outro projeto é o “Reformas Dia do Amor”, que tem o objetivo promover melhorias e reformas em lares já existentes na região.
Enquanto o grupo trabalha para que esses planos saiam do papel, Carla afirma que a ONG vai seguir fazendo o bem sem olhar a quem: “Eu digo que o Dia do Amor é um nome muito amplo, porque o Dia do Amor é pra todo mundo. Todo mundo pode fazer um Dia do Amor e todo mundo pode participar do Dia do Amor.”
Reportagem produzida na disciplina de Produção de Jornal (2020/2) do Curso de Jornalismo (Campus Fapa) do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Supervisão: Prof. Marco Bocardi